A repórter no recanto dos artistas
- pelegrincecilia
- 22 de nov. de 2021
- 8 min de leitura
Campanha da fraternidade 2006
Autoras: Cecília Pellegrini e Márcia Santucci
Base teórica: Livreto “Convivendo com a Diferença” - ONG Centro de Vida Independente CVI-Campinas e Frases retiradas do Jornal Correio Popular - Campinas/SP
Na redação do Jornal Sensação trabalham a repórter Reclamilda e sua estagiária Aprendite.
Certo dia a repórter estava em sua mesa e falava o que estava digitando: - ... O preço do creme de limpeza importado subindo...
Sua estagiária, que estava sentada bem ao lado concordou: - Pois é, continua subindo...
E Reclamilda continuou: - Trabalho, trabalho, trabalho. Entrevisto alguém aqui, escrevo uma reportagem ali. Que dia horrível: um trabalho irritante, ou melhor, não é o trabalho que é irritante, as pessoas que trabalham aqui são irritantes.
Sem entender Aprendite perguntou: - Falou alguma coisa?
- Não, estagiária Aprendite, não falei nada. A repórter respondeu com desdém. Em seguida saiu cobrando produção dos demais empregados: - Ei, Eduardo, você já escreveu aquele artigo sobre celulite que eu te pedi? Escreveu ou não escreveu? Carmen, já conseguiu as fotos daquela reportagem sobre estrias? Não?! Como não?! Vê se namora menos e produza mais. Esses dois, depois que começaram esse namoro...
Aprendite exclamou: - Eles formam um casal tão lindo!
Mas Reclamilda bradou: - Eu quero ver é produção!
Depois ela pegou um espelho na bolsa e disse: - Nossa, como engordei! E essa agora, que espinha enorme no meu rosto! Parece um vulcão em erupção. Droga, eu aqui com essa credencial para cobrir a festa na mansão dos Carvalho e me aparece esta espinha.
- Se você quiser, irei em seu lugar dona Reclamilda. A estagiária sugeriu.
- O quê? Você, Aprendite? Uma reles estagiária? Garota, você ainda precisa aprender muito comigo. Daqui uns 10 anos, quem sabe. Ah, mas eu irei à mansão dos Carvalho, ou não me chamo Reclamilda.
E digitou ainda mais rápido e com raiva: - Ah, mas eu irei. Eu irei, mesmo que eu tenha que colocar um quilo de maquiagem no rosto.
Sua reclamação foi interrompida com o som do telefone. Aprendite atendeu: - Redação do Jornal Sensação. Estag...
Mas foi interrompida pela voz estridente do presidente do jornal no outro lado da linha, que lhe deu uma ordem: - Passe para a Reclamilda.
- Sim senhor. É o chefão... Avisou a estagiária tremendo de medo.
A repórter falou com um tom de voz suave: - Repórter Reclamilda, bom dia!
O seu chefe respondeu bravo: - Não tem motivo para ser um bom dia, está um péssimo dia.
Reclamilda pensou: - Ihhhh, ele está uma fera pra variar.
O chefão gritou: - Pare tudo o que você estiver fazendo e vá fazer uma reportagem no Recanto dos Artistas, já, imediatamente, agora.
A repórter respondeu: - Recanto dos Artistas? Tudo bem, chefinho. Fique tranquilo, mas onde fica esse Recanto?
- Você acha que eu tenho tempo para ficar explicando onde fica esse ou aquele lugar? Se vira.
Em seguida o chefe dela bateu o telefone.
Reclamilda desligou e falou com ironia: - Obrigada pelas informações chefinho. Você é tão gentil...
Depois resolveu seguir adiante: - Mas deixa esse chefe mal-humorado pra lá. Nossa! Como as pessoas são azedas...
Aprendite questionou: - Falou comigo?
A repórter respondeu zombando: - Não Aprendite, falei com a minha agenda, não é agenda? Irei fazer uma reportagem no Recanto dos Artistas! Viu só estagiária, comigo é assim, só serviço de elite.
Ansiosa a estagiária quis saber: - Você irá para um lugar onde só tem artistas? São famosos?
A repórter esnobou: - É claro, né! Lógico que o chefe tinha que escolher a melhor, a mais eficiente, a mais bonita, a perfeita, a hiper, a master, a plus Repórter do Jornal Sensação. Eu, tão somente, eu. Mas que raiva, justo hoje que eu vim com esse modelito básico. E essa espinha, então. Nossa, deve ter cada artista lindo. Maquiagem neste rostinho lindo, um blazer por cima da roupa e pronto. Estou perfeita. Artistas lindões, belezas profundas da natureza humana, me aguardem!
Aprendite pediu: - Reclamilda, eu posso ir junto?
- Nem pensar! Respondeu a repórter enquanto ia saindo, mas logo mudou de ideia: - Hum... pensando bem, adoro quando tenho plateia. Venha, assim você verá e aprenderá como ser perfeita. Vamos!
E lá foram elas para o Recanto dos Artistas, onde todos os moradores já estavam no pátio central. Cada qual fazendo uma atividade artística: cantando, dançando, tocando instrumento, pintando, escrevendo, desenhando, fazendo artesanato, etc.
Quando as duas chegaram os artistas, muito alegres, as cumprimentaram: - Bom dia! Sejam bem-vindas!
Só a estagiária respondeu: - Bom dia!
Reclamilda perguntou para sua funcionária: - Tem certeza de que aqui é o Recanto dos Artistas? Não pode ser... Só estou vendo pessoas com deficiências...
Aprendite respondeu: - Lógico que tenho certeza e estou encantada com tanta produção artística.
A repórter falou brava: - Ah.... mas quando eu chegar na redação do jornal, o chefe vai ouvir poucas e boas. Como ele pode fazer isso comigo? Que perda de tempo... Eu com esses...
Uma pessoa numa cadeira de rodas se apresentou: - Oi, você deve ser a repórter que veio fazer a entrevista, não é? Estamos muito felizes com a oportunidade de mostrar os nossos talentos. Muito prazer, sou Angélica, diretora do Recanto. Angélica estendeu o braço para cumprimentar a repórter, mas ela não retribuiu.
A estagiária apertou a mão da pessoa imediatamente: - Muito prazer, dona Angélica. Sou Aprendite, estagiária do Jornal Sensação. Esta é a repórter Reclamilda.
A repórter puxou a estagiária para o lado: - Eu vou esperar no carro e você faz tudo, ok? Estou muito, muito confusa com tudo isso aqui. Toma aqui o meu celular porque o gravador é melhor.
Angélica falou: - Reclamilda, desculpe, mas eu ouvi o seu desabafo e não se preocupe, “muitas pessoas não deficientes ficam confusas quando encontram uma pessoa com deficiência. Isso é natural. Todos nós podemos nos sentir desconfortáveis diante do diferente” [livreto CVI].
Meio sem graça e surpresa com a revelação, Reclamilda disse: - Ah é?
Aprendite devolveu o celular para a repórter e a convidou: - Então, vamos começar a entrevista?
Reclamilda suspirou: - Sinceramente, tenho que confessar: não estou preparada para perguntar nada. O que faço? Devo me relacionar com vocês como se vocês não tivessem deficiência?
Dona Angélica respondeu: - “Se você se relacionar com uma pessoa com deficiência como se ela não tivesse uma deficiência, você vai ignorar uma característica muito importante dela... Aceite a deficiência. Ela existe... Ter uma deficiência não faz com que uma pessoa seja melhor ou pior do que uma pessoa que não tenha deficiência” (Livreto CVI).
A estagiária quis saber: - E, se por acaso, diante de alguém com deficiência, acontecer alguma situação embaraçosa...
Angélica citou uma situação: - Sei, como por exemplo, perguntar alguma coisa para uma pessoa que é surda, sem perceber que ela não consegue ouvir?
- Sim, isso mesmo! A repórter e a estagiária responderam aliviadas.
Como uma perfeita professora a senhora na cadeira de rodas explicou: - “As pessoas com deficiência são pessoas como vocês. Tem os mesmos direitos, os mesmos sentimentos, os mesmos receios, os mesmos sonhos. Você não deve ter receio de fazer ou dizer alguma coisa errada. Aja com naturalidade e tudo vai dar certo” (livreto CVI).
De repente uma pessoa com deficiência visual chegou e a Reclamilda correu ajudá-la. Ela segurou a pessoa e pôs a mão na perna da pessoa e falou alto: - Aqui tem um degrau.
- Oi, meu nome é Clara! Obrigada por querer ajudar-me como guia, mas estou acostumada com cada cantinho do Recanto dos Artistas. Ando por todos os lugares sem problema.
Angélica explicou: - Reclamilda, o que aconteceu agora é muito comum. Muitas pessoas pensam que uma pessoa que não enxerga também não ouve direito. “Nem sempre as pessoas cegas precisam de ajuda, mas se encontrar alguma que pareça estar em dificuldades, identifique-se, faça-a perceber que você está falando com ela e ofereça seu auxílio” (livreto CVI) .
Aprendite falou: - Entendi, nunca devemos ajudar sem perguntar antes como devemos fazer.
Todos os artistas responderam em uníssono: - Exatamente!
- Mas como seria o melhor jeito para guiar uma pessoa cega? Reclamilda perguntou.
Olinda, outra moradora do Recanto explicou: - Reclamilda, “coloque a mão da pessoa com deficiência no seu cotovelo dobrado” (livreto CVI).
A repórter percebeu o quanto era fácil e colocou a mão da Clara em seu cotovelo dobrado: - É muito simples! Vamos Clara?
Clara respondeu: - Sim, vamos! Veja, eu acompanho “o movimento do seu corpo enquanto você vai andando. Sempre é bom avisar antecipadamente a existência de degraus, pisos escorregadios, buracos, etc” (livreto CVI).
Depois foi a vez da Paula, outra moradora se colocar na entrevista: - Ei, dona repórter, deixe-me falar sobre a deficiência física? Coloque na reportagem que a bengala, assim como a muleta e a cadeira de rodas “é parte do espaço corporal da pessoa, quase uma extensão do seu corpo... Se a pessoa anda devagar, procure acompanhar o passo dela. As muletas e bengalas devem ficar sempre próximas à pessoa com deficiência. Quando você for falar com alguém que está sentado numa cadeira de rodas e a conversa for longa, sente-se também, porque ter que ficar olhando para cima por muito tempo é cansativo” (livreto CVI).
Reclamilda estava incrédula: - Nossa, eu nunca pensei nisso.
Angélica perguntou: - Vocês sabem por que foram designadas a estarem aqui fazendo esta reportagem?
- Não! As duas responderam.
Angélica explicou: - Porque neste ano de 2006, a CNBB e os organizadores da Campanha da Fraternidade optaram pelo tema “Fraternidade e Pessoas com deficiência”. Trata-se de um apelo para que as pessoas pensem que “um dia todos nós, mais cedo ou mais tarde, viveremos a experiência do que representa ter uma deficiência: quem não precisará usar óculos, ou terá dores nos ossos, ou não vai ficar idoso,” andar devagarzinho, falar com dificuldades... (Jornal Correio Popular)
Mais uma vez a repórter exclamou: - Nossa, eu nunca pensei nisso.
Clara continuou: - “Não é porque a pessoa tem determinada deficiência que não é cidadã, que não é capaz.” (Jornal Correio Popular)
Aprendite completou: - Muito pelo contrário. Veja só vocês. Que lugar bem cuidado, quanta produção artística!
Paula sintetizou: - Aqui no Recanto, vivemos em irmandade. Um ajudando o outro e produzimos muito.
- Todos tem dons? Reclamilda questionou.
Clara falou com toda convicção: - Todos os seres humanos têm dons, talentos especiais.
Os moradores perguntaram: - Você não pinta?
Reclamilda fez gestos negando e respondeu: - Não.
E continuaram a perguntar: - Você não canta?
Outra resposta negativa: - Não.
E mais uma pergunta: - Você não toca?
Outro não se ouviu: - Não.
E Reclamilda nervosa foi negando: - Não, não, não, mil vezes não.
A estagiária percebendo a frustração da chefe foi até ela: - Calma!
Angélica também ajudou: - É, minha filha, calma. Você é uma repórter e tem o dom da palavra, da escrita.
Reclamilda concordou: - É tenho, mas uso muito pouco esses dons. Sabiam que eu, até hoje, só escrevi sobre beleza, a vida dos artistas famosos, as fofocas da alta sociedade... De repente, venho aqui e descubro com vocês o quanto tenho e posso dar ao mundo.
Aprendite dicou tão comovida que correu abraçar a Reclamilda: - Nossa, como você falou bonito! Nunca pensei ouvir isso de você.
Reclamilda falou: - Amanhã, no Jornal Sensação, a nossa reportagem terminará assim: “Se cada um de nós olharmos para nossa vida e nossa realidade, chegaremos à conclusão de que a visão da Campanha da Fraternidade 2006 é útil para a construção de uma civilização de amor, com justiça, cidadania e inclusão social” (Jornal Correio Popular).
Todos bateram palmas e elogiaram: - Parabéns!
Com muita sinceridade Reclamilda revelou: - Adorei estar com vocês. Aprendi muito hoje.
E a estagiária fez uma bela reflexão: - É preciso abrir os olhos das pessoas que não conseguem enxergar o próximo. Abrir os ouvidos daquelas que estão surdas e não querem ouvir as palavras de amor. É preciso deixar de sermos mudos e falar bem alto que gostamos de praticar o bem. É preciso sair da paralisia que nos torna tão acomodados. Ei, você...
Todos convidaram: - “Levanta-te, vem para o meio”.
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