A repórter no recanto dos artistas
- pelegrincecilia
- 22 de nov. de 2021
- 8 min de leitura
Campanha da Fraternidade 2006
Autoras: Cecília Pellegrini e Márcia Santucci
Base teórica: Livreto “Convivendo com a Diferença” - ONG Centro de Vida Independente CVI-Campinas; Frases retiradas do Jornal Correio Popular - Campinas/SP
Cenários: 1 = Redação de um jornal: 2 mesas de tamanhos diferentes (maior para a repórter e bem menor para a estagiária), computador, telefone, agenda.
2 = Um recanto de artistas: sugestão: um painel com árvores e flores.
Obs.: Montar o cenário 1 mais ao fundo do palco e o cenário 2 será colocado apenas um painel na frente das mesas.
Personagens: Repórter Reclamilda, Estagiária Aprendite, Chefe (só a voz em off), Pessoas com deficiência, cada qual com uma tira de tecido escuro. Ex. Pessoa 1 - Mudo => tira na boca, Pessoa 2 - Paralítico => tira nas pernas, Pessoa 3 - Surdo => tira amarrada na orelha, Pessoa 4 - Cego => tira nos olhos, Pessoa 5 => com 1 braço só, etc.
[Em cena estará sentada atrás da mesa a repórter e sua estagiária estará numa mesa bem menor, ambas trabalhando.]
REPÓRTER [fala enquanto digita no computador]: - ... O preço do creme de limpeza importado subindo...
ESTAGIÁRIA: - Pois é, continua subindo...
REPÓRTER: - Trabalho, trabalho, trabalho. Entrevisto alguém aqui, escrevo uma reportagem ali. Que dia horrível: um trabalho irritante, ou melhor, não é o trabalho que é irritante, as pessoas que trabalham aqui são irritantes.
ESTAGIÁRIA: - Falou alguma coisa?
REPÓRTER: - Não, estagiária Aprendite, não falei nada. Ei, Eduardo, [aponta alguém sentado na plateia] você já escreveu aquele artigo sobre celulite que eu te pedi? Escreveu ou não escreveu? Carmen, já conseguiu as fotos daquela reportagem sobre estrias? Não?! Como não?! Vê se namora menos e produza mais. Esses dois, depois que começaram esse namoro...
ESTAGIÁRIA: - Eles formam um casal tão lindo!
REPÓRTER: - Eu quero ver é produção [pega um espelho na bolsa] Nossa, como engordei! E essa agora, que espinha enorme no meu rosto! Parece um vulcão em erupção. Droga, eu aqui com essa credencial para cobrir a festa na mansão dos Carvalho e me aparece esta espinha.
ESTAGIÁRIA: - Se você quiser, irei em seu lugar dona Reclamilda.
REPÓRTER: - O quê? Você, Aprendite? Uma reles estagiária? Garota, você ainda precisa aprender muito comigo. Daqui uns 10 anos, quem sabe. Ah, mas eu irei à mansão dos Carvalho, ou não me chamo Reclamilda [digita rápido e com raiva]. Ah, mas eu irei. Eu irei, mesmo que eu tenha que colocar um quilo de maquiagem no rosto [ouve-se o som do telefone.]
ESTAGIÁRIA: - Redação do Jornal Sensação. Estag... [é interrompida]
VOZ DO CHEFE [bravo]: - Passe para a Reclamilda.
ESTAGIÁRIA: - Sim senhor. É o chefão...
REPÓRTER [tom de voz suave]: - Repórter Reclamilda, bom dia!
VOZ DO CHEFE [bravo]: - Não tem motivo para ser um bom dia, está um péssimo dia.
REPÓRTER [fala para a plateia]: - Ihhh, ele está uma fera pra variar.
VOZ DO CHEFE [bravo]: - Pare tudo o que você estiver fazendo e vá fazer uma reportagem no Recanto dos Artistas, já, imediatamente, agora.
REPÓRTER: - Recanto dos Artistas? Tudo bem, chefinho. Fique tranquilo, mas onde fica esse Recanto?
VOZ DO CHEFE: - Você acha que eu tenho tempo para ficar explicando onde fica esse ou aquele lugar? Se vira. [bate o telefone. Ouve-se o barulho de linha]
REPÓRTER [desliga]: - Obrigada pelas informações chefinho. Você é tão gentil..., mas deixa esse chefe mal-humorado pra lá. Nossa! Como as pessoas são azedas...
ESTAGIÁRIA: - Falou comigo?
REPÓRTER: - Não Aprendite, falei com a minha agenda, não é agenda? Irei fazer uma reportagem no Recanto dos Artistas! Viu só estagiária, comigo é assim, só serviço de elite.
ESTAGIÁRIA: - Você irá para um lugar onde só tem artistas? São famosos?
REPÓRTER: - É claro, né! Lógico que o chefe tinha que escolher a melhor, a mais eficiente, a mais bonita, a perfeita, a hiper, a master, a plus Repórter do Jornal Sensação. Eu, tão somente, eu. Mas que raiva, justo hoje que eu vim com esse modelito básico. E essa espinha, então. Nossa, deve ter cada artista lindo. [fala enquanto se arruma] Maquiagem neste rostinho lindo, um blazer por cima da roupa e pronto. Estou perfeita. Artistas lindões, belezas profundas da natureza humana, me aguardem!
ESTAGIÁRIA: - Reclamilda, eu posso ir junto?
REPÓRTER: - Nem pensar! [vai saindo] Hum... [volta] pensando bem, adoro quando tenho plateia. Venha, assim você verá e aprenderá como ser perfeita. Vamos! [As duas sairão por um lado do palco e entrarão pelo outro.]
[Música para a troca de cenário, colocando-se apenas um painel na frente do cenário anterior.]
[Entram por todos os lados pessoas com deficiências fazendo atividades artísticas: cantando, dançando, tocando instrumento, pintando, escrevendo, desenhando, fazendo artesanato, etc.]
[A repórter e a estagiária entram em cena.]
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA [alegres]: - Bom dia! Sejam bem-vindas!
ESTAGIÁRIA [responde]: - Bom dia!
REPORTER [fala com a estagiária]: - Tem certeza de que aqui é o Recanto dos Artistas? Não pode ser.
ESTAGIÁRIA: - Lógico que tenho certeza e estou encantada com tanta produção artística.
REPÓRTER [brava]: - Ah... mas quando eu chegar na redação do jornal, o chefe vai ouvir poucas e boas. Como ele pode fazer isso comigo? Que perda de tempo... Eu com esses...
PESSOA COM DEFICIÊNCIA 2 [numa cadeira de rodas]: - Oi, você deve ser a repórter que veio fazer a entrevista, não é? Estamos muito felizes com a oportunidade de mostrar os nossos talentos. Muito prazer, sou Angélica, diretora do Recanto [estende o braço para cumprimentar a repórter, mas ela não retribui. A estagiária aperta a mão da pessoa 2.]
ESTAGIÁRIA: - Muito prazer, dona Angélica. Sou Aprendite, estagiária do Jornal Sensação. Esta é a repórter Reclamilda.
REPÓRTER [puxa a estagiária para o lado]: - Eu vou esperar no carro e você faz tudo, ok? Estou muito, muito confusa com tudo isso aqui. Toma aqui o gravador do meu celular que é melhor.
PESSOA 2: - Reclamilda, desculpe, mas eu ouvi o seu desabafo e não se preocupe, “muitas pessoas não deficientes ficam confusas quando encontram uma pessoa com deficiência. Isso é natural. Todos nós podemos nos sentir desconfortáveis diante do diferente” [livreto CVI].
REPÓRTER: - Ah é?
ESTAGIÁRIA: - Então, vamos começar a entrevista? [devolve o celular para a repórter.]
REPÓRTER [suspira]: - Sinceramente, tenho que confessar: não estou preparada para perguntar nada. O que faço? Devo me relacionar com vocês como se vocês não tivessem deficiência?
PESSOA 2: - “Se você se relacionar com uma pessoa com deficiência como se ela não tivesse uma deficiência, você vai ignorar uma característica muito importante dela... Aceite a deficiência. Ela existe... Ter uma deficiência não faz com que uma pessoa seja melhor ou pior do que uma pessoa que não tenha deficiência” (Livreto CVI).
ESTAGIÁRIA: - E, se por acaso, diante de alguém com deficiência, acontecer alguma situação embaraçosa...
PESSOA 2: - Sei, como por exemplo, perguntar alguma coisa para uma pessoa que é surda, sem perceber que ela não consegue ouvir?
ESTAGIÁRIA e REPÓRTER: - Sim, isso mesmo.
PESSOA 2: - “As pessoas com deficiência são pessoas como vocês. Têm os mesmos direitos, os mesmos sentimentos, os mesmos receios, os mesmos sonhos. Você não deve ter receio de fazer ou dizer alguma coisa errada. Aja com naturalidade e tudo vai dar certo” (livreto CVI).
PESSOA 4 [com deficiência visual (venda nos olhos) chega e a Reclamilda corre ajudá-la. Ela segura a pessoa e põe a mão na perna da pessoa e fala alto]: - Aqui tem um degrau.
PESSOA 4: - Obrigada por querer ajudar-me como guia, mas estou acostumada com cada cantinho do Recanto dos Artistas. Ando por todos os lugares sem problema.
PESSOA 2: - Reclamilda, o que aconteceu agora é muito comum. Muitas pessoas pensam que uma pessoa que não enxerga também não ouve direito. “Nem sempre as pessoas cegas precisam de ajuda, mas se encontrar alguma que pareça estar em dificuldades, identifique-se, faça-a perceber que você está falando com ela e ofereça seu auxílio” (livreto CVI) .
ESTAGIÁRIA: - Entendi, nunca devemos ajudar sem perguntar antes como devemos fazer.
TODOS: - Exatamente!
REPÓRTER: - Mas como seria o melhor jeito para guiar uma pessoa cega?
PESSOA 3: - Reclamilda, “coloque a mão da pessoa com deficiência no seu cotovelo dobrado” [demonstrar] (livreto CVI).
REPÓRTER: - É muito simples!
PESSOA 4: - Veja, eu acompanho “o movimento do seu corpo enquanto você vai andando. Sempre é bom avisar antecipadamente a existência de degraus, pisos escorregadios, buracos, etc” (livreto CVI).
PESSOA 5: - Ei, dona repórter, deixe-me falar sobre a deficiência física? Coloque na reportagem que a bengala, assim como a muleta e a cadeira de rodas “é parte do espaço corporal da pessoa, quase uma extensão do seu corpo... Se a pessoa anda devagar, procure acompanhar o passo dela. As muletas e bengalas devem ficar sempre próximas à pessoa com deficiência. Quando você for falar com alguém que está sentado numa cadeira de rodas e a conversa for longa, sente-se também porque ter que ficar olhando para cima por muito tempo é cansativo” (livreto CVI).
REPÓRTER: - Nossa, eu nunca pensei nisso.
PESSOA 2: - Vocês sabem por que foram designadas a estarem aqui fazendo esta reportagem?
REPORTER e ESTAGIÁRIA: - Não.
PESSOA 2: - Porque neste ano de 2006, a CNBB e os organizadores da Campanha da Fraternidade optaram pelo tema “Fraternidade e Pessoas com deficiência”. Trata-se de um apelo para que as pessoas pensem que “um dia todos nós, mais cedo ou mais tarde, viveremos a experiência do que representa ter uma deficiência: quem não precisará usar óculos, ou terá dores nos ossos, ou não vai ficar idoso,” andar devagarzinho, falar com dificuldades... (Jornal Correio Popular)
REPÓRTER: - Nossa, eu nunca pensei nisso.
PESSOA 3: - “Não é porque a pessoa tem determinada deficiência que não é cidadã, que não é capaz.” (Jornal Correio Popular)
ESTAGIÁRIA: - Muito pelo contrário. Veja só vocês. Que lugar bem cuidado, quanta produção artística!
PESSOA 4: - Aqui no Recanto, vivemos em irmandade. Um ajudando o outro e produzimos muito.
REPÓRTER: - Todos têm dons?
PESSOA 3: - Todos os seres humanos têm dons, talentos especiais.
TODOS: - Você não pinta?
REPÓRTER [faz gestos negando]: - Não.
TODOS: - Você não canta? [gestos]: - Não.
TODOS: - Você não toca? [gestos]: - Não.
REPÓRTER [nervosa]: - Não, não, não, mil vezes não.
ESTAGIÁRIA: - Calma!
PESSOA 2: - É, minha filha, calma. Você é uma repórter e tem o dom da palavra, da escrita.
REPÓRTER: - É, tenho, mas uso muito pouco esses dons. Sabiam que eu, até hoje, só escrevi sobre beleza, a vida dos artistas famosos, as fofocas da alta sociedade... De repente, venho aqui e descubro com vocês o quanto tenho e posso dar ao mundo.
ESTAGIÁRIA [abraça a Reclamilda]: - Nossa, como você falou bonito! Nunca pensei ouvir isso de você.
REPÓRTER: - Amanhã, no Jornal Sensação, a nossa reportagem terminará assim: “Se cada um de nós olharmos para nossa vida e nossa realidade, chegaremos à conclusão de que a visão da Campanha da Fraternidade 2006 é útil para a construção de uma civilização de amor, com justiça, cidadania e inclusão social” (Jornal Correio Popular).
TODOS [batem palmas]: - Parabéns!
REPÓRTER: - Adorei estar com vocês. Aprendi muito hoje.
ESTAGIÁRIA: - É preciso abrir os olhos das pessoas que não conseguem enxergar o próximo. Abrir os ouvidos daquelas que estão surdas e não querem ouvir as palavras de amor. É preciso deixar de sermos mudos e falar bem alto que gostamos de praticar o bem. É preciso sair da paralisia que nos torna tão acomodados. Ei, você...
TODOS: - “Levanta-te, vem para o meio” [gestos iguais].
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